sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Nosso Lar - 19 - A Jovem Desencarnada

– Sua neta não vem à mesa para as refeições?

 - perguntei à dona da casa, ensaiando palestra mais íntima.

– Por enquanto, alimenta-se a sós - esclareceu dona Laura -, a tolinha continua nervosa, abatida. Aqui, não trazemos à mesa qualquer pessoa que se manifeste perturbada ou desgostosa. 


A neurastenia e a inquietação emitem fluidos pesados e venenosos, que se misturam automaticamente às substâncias alimentares.

Minha neta demorou-se no Umbral quinze dias, em forte sonolência, assistida por nós. Deveria ingressar nos pavilhões hospitalares, mas, afinal, veio submeter-se aos meus cuidados diretos.


Manifestei desejo de visitar a recém-chegada do planeta. Seria muito interessante ouvi-la. Há quanto tempo estava sem notícias diretas da existência comum?


A senhora Laura não se fez rogada quando lhe dei a conhecer meu desejo.


Demandamos um quarto confortável e muito amplo. Uma jovem muito pálida repousava em cômoda poltrona. Surpreendeu-se vivamente ao ver-me.


– Este amigo, Eloísa - explicou a genitora de Lísias, indicando-me -, é um irmão nosso que voltou da esfera física, há pouco
tempo.


A moça fitou-me curiosa, embora os olhos perdidos nas fundas olheiras traduzissem grande esforço para concentrar atenção.


Cumprimentou-me, esboçando vago sorriso, dando-me eu a conhecer, por minha vez.


– Deve estar cansada - observei. Antes, porém, que ela respondesse, adiantou-se a senhora Laura, procurando subtraí-la a esforços sobreposse fatigantes:


– Eloísa tem estado inquieta, aflita. Em parte, justifica-se. A tuberculose foi longa e deixou-lhe traços profundos; entretanto, não se pode prescindir, a tempo algum, do otimismo e da coragem.


Vi a jovem arregalar os olhos muito negros, como a reter o pranto, mas em vão. O tórax começou a arfar-lhe violentamente e, colando o lenço ao rosto, não conseguia conter os soluços angustiosos.


– Tolinha! - disse a meiga senhora abraçando-a - é necessário reagir contra isso. Estas impressões são os resultados da educação religiosa deficiente, nada mais. Sabes que tua mãe não se demorará e que não podes contar com a fidelidade do noivo, que, de modo algum, está preparado a te oferecer uma sincera dedicação espiritual na Terra. Ele ainda está longe do espírito sublime do amor iluminado.


Naturalmente, desposará outra e deves habituarte a esta convicção. Nem seria justo exigir-lhe a vinda brusca.

Sorrindo maternalmente, a senhora Laura acrescentou:


– Admitamos que viesse, forçando a lei. Não seria mais duro o sofrimento? Não pagarias caro a cooperação que houvesses desenvolvido nesse particular? Não te faltarão amizades carinhosas, nem colaboração fraternal, para que te equilibres aqui. E se amas, de fato, o rapaz, deves procurar harmonia para beneficiá-lo mais tarde. Além disso, tua mãe não tarda a chegar.


Penalizou-me o pranto copioso da jovem. Procurei estabelecer novo rumo à conversação, tentando subtraí-la à crise de lágrimas.


– Donde vem você, Eloísa? - interroguei.


A mãe de Lísias, agora calada, parecia igualmente desejosa de vê-la desembaraçar-se. Após longos instantes em que enxugava os olhos lacrimosos, a moça respondeu:


– Do Rio de Janeiro.


– Mas não deve chorar assim - objetei. Você é muito feliz.


Desencarnou há poucos dias, está com os seus parentes e não conheceu tempestades na grande viagem...


Ela pareceu reanimar-se, falando mais calma:


– Não imagina, porém, quanto tenho sofrido. Oito meses de luta com a tuberculose, não obstante os tratamentos... a mágoa de haver transmitido a moléstia a minha carinhosa mãe... Além disso, o que padeceu por minha causa o pobre noivo, é inenarrável...


– Ora, ora, não diga isso - observou a senhora Laura a sorrir.


Na Terra temos sempre a ilusão de que não há dor maior que a nossa. Pura cegueira: há milhões de criaturas afrontando situações verdadeiramente cruéis, comparadas às nossas experiências.


– Arnaldo, porém, vovó, ficou sem consolo, desesperado. Tudo isso dá que pensar - acentuou contrafeita.


– E acreditas sinceramente nessa impressão? - perguntou a matrona com inflexão de carinho. Observei teu ex-noivo, diversas vezes, no curso da tua enfermidade. Era natural que ele se comovesse tanto, vendo-te o corpo reduzido a frangalhos; mas não está preparado para compreender um sentimento puro. 


Reconfortarse-á muito depressa. Amor iluminado não é para qualquer criatura humana. Conserva, portanto, o teu otimismo. 

Poderás auxiliá-lo, sem dúvida, muitas vezes, mas no que concerne à união conjugal, quando puderes excursionar às esferas do planeta, em nossa companhia, já o encontrarás casado com outra.

Admirado por minha vez, notei a surpresa dolorosa de Eloísa.


Não sabia a convalescente como portar-se ante a serenidade e o bom senso da avó.  – Será possível?


A genitora de Lísias esboçou um gesto extremamente carinhoso e falou:


– Não sejas teimosa, nem tentes desmentir-me.


Vendo que a enferma parecia tomar a atitude íntima de quem deseja provas, a senhora Laura insistiu, muito meiga:


– Não te recordas da Maria da Luz, a colega que te levava flores todos os domingos? Pois nota: quando o médico anunciou, em caráter confidencial, a impossibilidade de restabelecer-te o corpo físico, Arnaldo, embora muito magoado, começou a envolvê-la em vibrações mentais diferentes. Agora que aqui estás, não demorarão muito as resoluções novas.


Ah! que horror, vovó!


– Horror, por quê? É preciso te habituares a considerar as necessidades alheias. Teu noivo é homem comum, não está alertado para as belezas sublimes do amor espiritual. Não podes operar milagres nele, por muito que o ames. A descoberta de si mesmo é apanágio de cada um.


Arnaldo conhecerá mais tarde a beleza do teu idealismo; mas, por agora, é preciso entregá-lo às experiências de que necessita.

– Não me conformo! - clamou a jovem, chorando - justamente Maria da Luz, a amiga que sempre julguei fidelíssima.


A senhora Laura, todavia, sorriu e falou, cautelosa:


– Não será, porém, mais agradável confiá-lo aos cuidados de uma criatura irmã? Maria da Luz será sempre tua amiga espiritual, ao passo que outra mulher talvez te dificultasse, mais tarde, o acesso ao coração dele.


Eu estava eminentemente surpreendido. Eloísa prorrompera em soluços. A bondosa senhora percebeu-me a intranqüilidade e, no propósito talvez de orientar tanto a neta quanto a mim, esclareceu sensatamente:


– Sei a causa do teu pranto, filhinha: nasce da terra inculta do nosso milenário egoísmo, da nossa renitente vaidade humana.


Entretanto, a vovó não te fala para ferir, mas para acordar.


Enquanto Eloísa chorava, a mãe de Lísias convidou-me novamente à sala de estar, considerando que a doente necessitava de repouso.


Ao sentarmo-nos, falou em tom confidencial:


– Minha neta chegou profundamente fatigada.


Prendeu o coração, demasiadamente, nas teias do amor-próprio. A rigor, o lugar dela seria em qualquer dos nossos hospitais; entretanto, o Assistente Couceiro julgou melhor situá-la junto ao nosso carinho.

Isso, aliás, é muito do meu agrado, porque minha querida Teresa, sua mãe, está a chegar. Um pouco de paciência e atingiremos a solução justa. Questão de tempo e serenidade.

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