sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Nosso Lar - 2 - Clarêncio 

"Suicida! Suicida! Criminoso! Infame!" - gritos assim, cercavam- me de todos os lados.

Onde os sicários de coração empedernido?

Por vezes, enxergava-os de relance, escorregadios na treva espessa e, quando meu desespero atingia o auge, atacava-os, mobilizando extremas energias.


Em vão, porém, esmurrava o ar nos paroxismos da cólera. Gargalhadas sarcásticas feriam-me os ouvidos, enquanto os vultos negros desapareciam na sombra.

Para quem apelar? Torturava-me a fome, a sede me escaldava. 


Comezinhos fenômenos da experiência material patenteavam-se- me aos olhos. Crescera-me a barba, a roupa começava a romper-se com os esforços da resistência, na região desconhecida. A circunstância mais dolorosa, no entanto, não é o terrível abandono a que me sentia votado, mas o assédio incessante de forças perversas que me assomavam nos caminhos ermos e obscuros. Irritavam- me, aniquilavam-me a possibilidade de concatenar idéias.

Desejava ponderar maduramente a situação, esquadrinhar razões e estabelecer novas diretrizes ao pensamento, mas aquelas vozes, aqueles lamentos misturados de acusações nominais, desnorteavam-me irremediavelmente.


– Que buscas, infeliz! Aonde vais, suicida?


Tais objurgatórias, incessantemente repetidas, perturbavam-me o coração. Infeliz, sim; mas, suicida? - nunca! Essas increpações, a meu ver, não eram procedentes. Eu havia deixado o corpo físico a contragosto. Recordava meu porfiado duelo com a morte.


Ainda julgava ouvir os últimos pareceres médicos, enunciados na Casa de Saúde; lembrava a assistência desvelada que tivera, os curativos dolorosos que experimentara nos dias longos que se seguiram à delicada operação dos intestinos. Sentia, no curso dessas reminiscências, o contacto do termômetro, o pique desagradável da agulha de injeções e, por fim, a última cena que precedera o grande sono: minha esposa ainda jovem e os três filhos
contemplando-me, no terror da eterna separação. 


Depois... o despertar na paisagem úmida e escura e a grande caminhada que parecia sem-fim.

Por que a pecha de suicídio, quando fora compelido a abandonar a casa, a família e o doce convívio dos meus? O homem mais forte conhecerá limites à resistência emocional. Firme e resoluto a princípio, comecei por entregar-me a longos períodos de desânimo e, longe de prosseguir na fortaleza moral, por ignorar o próprio fim, senti que as lágrimas longamente represadas visitavam- me com mais freqüência, extravasando do coração.


A quem recorrer? Por maior que fosse a cultura intelectual trazida do mundo, não poderia alterar, agora, a realidade da vida.


Meus conhecimentos, ante o infinito, semelhavam-se a pequenas bolhas de sabão levadas ao vento impetuoso que transforma as paisagens. Eu era alguma coisa que o tufão da verdade carreava para muito longe. Entretanto, a situação não modificava a outra realidade do meu ser essencial. Perguntando a mim mesmo se não enlouquecera, encontrava a consciência vigilante, esclarecendo-me que continuava a ser eu mesmo, com o sentimento e a cultura colhidos na experiência material. Persistiam as necessidades fisiológicas, sem modificação. Castigava-me a fome todas as fibras e, nada obstante, o abatimento progressivo não me fazia cair definitivamente em absoluta exaustão. De quando em quando, deparavam-se-me verduras que me pareciam agrestes, em torno de humildes filetes d'água a que me atirava sequioso.


Devorava as folhas desconhecidas, colava os lábios à nascente turva, enquantomo permitiam as forças irresistíveis, a impelirem-me para frente.

Muita vez suguei a lama da estrada, recordei o antigo pão de cada dia, vertendo copioso pranto. Não raro, era imprescindível ocultar-me das enormes manadas de seres animalescos, que passavam em bando, quais feras insaciáveis. Eram quadros de estarrecer! acentuava-se o desalento. Foi quando comecei a recordar que deveria existir um Autor da Vida, fosse onde fosse.


Essa idéia confortou-me. Eu, que detestara as religiões no mundo, experimentava agora a necessidade de conforto místico. Médico extremamente arraigado ao negativismo da minha geração, impunhase- me atitude renovadora. Tornava-se imprescindível confessar a falência do amor-próprio, a que me consagrara orgulhoso.

E, quando as energias me faltaram de todo, quando me senti absolutamente colado ao lodo da Terra, sem forças para reerguerme, pedi ao Supremo Autor da Natureza me estendesse mãos paternais, em tão amargurosa emergência.


Quanto tempo durou a rogativa? Quantas horas consagrei à súplica, de mãos-postas, imitando a criança aflita?


Apenas sei que a chuva das lágrimas me lavou o rosto; que todos os meus sentimentos se concentraram na prece dolorosa. Estaria, então, completamente esquecido?

Não era, igualmente, filho de Deus, embora não cogitasse de conhecer-lhe a atividade sublime quando engolfado nas vaidades da experiência humana? Por que não me perdoaria o Eterno Pai, quando providenciava ninho às aves inconscientes e protegia, bondoso, a flor tenra dos campos agrestes?

Ah! é preciso haver sofrido muito, para entender todas as misteriosas belezas da oração; é necessário haver conhecido o remorso, a humilhação, a extrema desventura, para tomar com eficácia o sublime elixir de esperança. Foi nesse instante que as neblinas espessas se dissiparam e alguém surgiu, emissário dos Céus. Um velhinho simpático me sorriu paternalmente. Inclinou-se, fixou nos meus os grandes olhos lúcidos, e falou:


– Coragem, meu filho! O Senhor não te desampara.


Amargurado pranto banhava-me a alma toda. 


Emocionado, quis traduzir meu júbilo, comentar a consolação que me chegava, mas, reunindo todas as forças que me restavam, pude apenas inquirir:

– Quem sois, generoso emissário de Deus?


O inesperado benfeitor sorriu bondoso e respondeu:


– Chama-me Clarêncio, sou apenas teu irmão.


E, percebendo o meu esgotamento, acrescentou:


– Agora, permanece calmo e silencioso. É preciso descansar para reaver energias.


Em seguida, chamou dois companheiros que guardavam atitude de servos desvelados e ordenou:


– Prestemos ao nosso amigo os socorros de emergência.


Alvo lençol foi estendido ali mesmo, à guisa de maca improvisada, aprestando-se ambos os cooperadores a transportarem-me, generosamente.


Quando me alçavam, cuidadosos, Clarêncio meditou um instante e esclareceu, como quem recorda inadiável obrigação:


– Vamos sem demora. Preciso atingir "Nosso Lar" com a presteza possível.

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