sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Nosso Lar - 30 - Herança E Eutanásia

Ainda não voltara a mim da profunda surpresa, quando Salústio se aproximou, informando a Narcisa:

– Nossa irmã Paulina deseja ver o pai enfermo, no Pavilhão 5.


Antes de atender, julguei razoável consultá-la, porque o doente continua em crise muito aguda.


Mostrando gestos de bondade que lhe eram característicos, Narcisa acentuou:


– Mande-a entrar sem demora. Ela tem permissão da Ministra, visto estar consagrando o tempo disponível em tarefa de reconciliação dos familiares.


Enquanto o mensageiro se despedia, apressado, a enfermeira bondosa acrescentava, dirigindo-se a mim:


– Você verá que filha dedicada!


Não decorrera um minuto e Paulina estava diante de nós, esbelta e linda. Trajava uma túnica muito leve, tecida em seda luminosa.


Angelical beleza caracterizava-lhe os traços fisionômicos, mas os olhos denunciavam extrema preocupação. Narcisa apresentou- a delicadamente e, sentindo talvez que poderia confiar na minha presença, perguntou, algo inquieta:


– E papai, minha amiga?


– Um pouco melhor - esclareceu a enfermeira -, no entanto, ainda acusa desequilíbrios fortes.


– É lamentável - retrucou a jovem -, nem ele, nem os outros cedem no estado mental a que se recolheram.


Sempre o mesmo ódio e a mesma displicência. Narcisa nos convidou a acompanhá-la e, minutos após, tinha diante de mim um velho de fisionomia desagradável. Olhar duro, cabeleira desgrenhada, rugas profundas, lábios retraídos, inspirava mais piedade que simpatia. Procurei, contudo, vencer as vibrações inferiores que me dominaram, a fim de observar, acima do sofredor, o irmão espiritual. Desapareceu a impressão de repugnância, aclarando-se-me os raciocínios. Apliquei a lição a mim mesmo.

Como teria chegado, por minha vez, ao Ministério do Auxílio?


Deveria ser horrível meu semblante de desesperado.


Quando examinamos a desventura de alguém, lembrando as próprias deficiências, há sempre asilo para o amor fraterno, no coração.

O velho enfermo não teve uma palavra de ternura para a filha que o saudou carinhosa. Através do olhar, que evidenciava aspereza e revolta, semelhava-se a uma fera humana enjaulada.


– Papai, o senhor sente-se melhor? - perguntou com extremo carinho filial.


– Ai!... Ai!... - gritou o doente em voz estentórica - não posso esquecer o infame, não posso descansar o pensamento... Ainda o vejo a meu lado, ministrando-me o veneno mortal!...


– Não diga isso, papai - pediu a moça delicadamente -, lembre-se de que Edelberto entrou em nossa casa como filho, enviado por Deus.


– Meu filho? - gritou o infeliz - nunca! nunca!... É criminoso sem perdão, filho do inferno!...


Paulina falava, agora, com os olhos rasos d’água.


– Ouçamos, papai, a lição de Jesus, que recomenda nos amemos uns aos outros. Atravessamos experiências consangüíneas, na Terra, para adquirir o verdadeiro amor espiritual. Aliás, é indispensável reconhecer que só existe um Pai realmente eterno, que é Deus; mas o Senhor da Vida nos permite a paternidade ou a maternidade no mundo, a fim de aprendermos a fraternidade sem  mácula. Nossos lares terrestres são cadinhos de purificação dos sentimentos ou templos de união sublime, a caminho da solidariedade universal. Muito lutamos e padecemos, até adquirir o verdadeiro título de irmão. Somos todos uma só família, na Criação, sob a bênção providencial de um Pai único.


Ouvindo-lhe a voz muito meiga, o doente se pôs a chorar convulsivamente.


– Perdoe Edelberto, papai! Procure sentir nele, não o filho leviano, mas o irmão necessitado de esclarecimento. Estive em nossa casa, ainda hoje, lá observando extremas perturbações.


Daqui, deste leito, o senhor envolve todos os nossos em fluidos de amargura e incompreensão e eles lhe fazem o mesmo por idêntico modo. O pensamento, em vibrações sutis, alcança o alvo, por mais distante que esteja. A permuta de ódio e desentendimento causa ruína e sofrimento nas almas. Mamãe recolheu-se, faz alguns dias, ao hospício, ralada de angústia. Amália e Cacilda entraram em luta judicial com Edelberto e Agenor, em virtude dos grandes patrimônios materiais que o senhor ajuntou nas esferas da carne.


Um quadro terrível, cujas sombras poderiam diminuir, se sua mente vigorosa não estivesse mergulhada em propósitos de vingança.


Aqui, vemo-lo em estado grave; na Terra, mamãe louca e os filhos perturbados, odiando-se entre si. Em meio de tantas mentes desequilibradas, uma fortuna de um milhão e quinhentos mil cruzeiros. E que vale isso, se não há um átomo de felicidade para ninguém?


– Mas eu leguei enorme patrimônio à família - atalhou o infeliz, rancorosamente -, desejando o bem-estar de todos...


Paulina não o deixou terminar, retomando a palavra:


– Nem sempre sabemos interpretar o que seja benefício, no capítulo da riqueza transitória. Se o senhor assegurasse o futuro dos nossos, garantindo-lhes a tranqüilidade moral e o trabalho honesto, seu esforço seria de valiosa previdência; mas, às vezes,  papai, costumamos amealhar o dinheiro por espírito de vaidade e ambição. Querendo viver acima dos outros, não nos lembramos disso, senão nas expressões externas da vida. São raros os que se preocupam em ajuntar conhecimentos nobres, qualidades de tolerância, luzes de humildade, bênçãos de compreensão. 


Impomos a outrem os nossos caprichos, afastamo-nos dos serviços do Pai, esquecemos a lapidação do nosso espírito. Ninguém nasce no planeta simplesmente para acumular moedas nos cofres ou valores nos bancos. É natural que a vida humana peça o concurso da previdência e é justo que não prescinda da contribuição de mordomos fiéis, que saibam administrar com sabedoria; mas ninguém será mordomo do Pai com avareza e propósitos de dominação. Tal gênero de vida arruinou nossa casa.

Debalde, noutro tempo, busquei levar socorro espiritual ao ambiente doméstico. Enquanto o senhor e mamãe se sacrificavam por aumentar haveres, Amália e Cacilda esqueceram o serviço útil e, como preguiçosas da banalidade social, encontraram ociosos que as desposaram, visando a vantagens financeiras. Agenor repudiou o estudo sério, entregando- se a más companhias. Edelberto conquistou o título de médico, alheando-se por completo da Medicina e exercendo-a tão-somente de longe em longe à maneira do trabalhador que visita o serviço por curiosidade. Todos arruinaram belas possibilidades espirituais, distraídos pelo dinheiro fácil e apegados à idéia de herança.

O enfermo tomou uma expressão de pavor e acrescentou:


– Maldito Edelberto! Filho criminoso e ingrato! 


Matou-me sem piedade, quando ainda necessitava regularizar minhas disposições testamentárias! Malvado!... Malvado!...

– Cale-se, papai! Tenha compaixão de seu filho, perdoe e esqueça!...


O velho, porém, continuou a praguejar em voz alta.


A jovem preparava- se para discutir, mas Narcisa endereçou-lhe significativo olhar, chamando Salústio para socorrer o doente em crise. Calou-se Paulina, acariciando a fronte paterna e contendo, a custo, as lágrimas. Daí a instante, retirava-me em companhia de ambas, sob forte impressão.

As duas amigas trocaram confidências, ainda por alguns minutos, despedindo-se Paulina a evidenciar muita generosidade nas frases gentis, mas muita tristeza no olhar afogado em justa preocupação.


Voltando à intimidade, Narcisa disse, bondosa:


– Os casos de herança, em regra, são extremamente complicados.


Com raras exceções, acarretam enorme peso a legadores e legatários. Neste caso, porém, vemos não só isso, mas também a eutanásia. A ambição do dinheiro criou, em toda a família de Paulina, esquisitices e desavenças. Pais avarentos possuem filhos esbanjadores. Fui a casa de nossa amiga, quando o irmão, o Edelberto, médico de aparência distinta, empregou, no genitor quase moribundo, a chamada "morte suave".


Esforçamo-nos por o evitar, mas foi tudo em vão. O pobre rapaz desejava, de fato, apressar o desenlace, por questões de ordem financeira, e aí temos agora a imprevidência e o resultado - o ódio e a moléstia.

E com expressivo gesto, Narcisa rematou:


– Deus criou seres e céus, mas nós costumamos transformarnos em espíritos diabólicos, criando nossos infernos individuais.

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