quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Nosso Lar - 49 - Regressando à Casa

 Imitando a criança que se conduz pelos passos dos benfeitores, cheguei à minha cidade, com a sensação indescritível do viajante que torna ao berço natal depois de longa ausência.

Sim, a paisagem não se modificara de maneira sensível. As
velhas árvores do bairro, o mar, o mesmo céu, o mesmo perfume
errante. Embriagado de alegria, não mais notei a expressão fisionômica da senhora Laura, que denunciava extrema preocupação, e despedi-me da pequena caravana, que seguiria adiante.


Clarêncio abraçou-me e falou:


– Você tem uma semana ao seu dispor. Passarei aqui diariamente
para revê-lo, atento aos cuidados que devo consagrar aos
problemas da reencarnação de nossa irmã. Se quiser ir a "Nosso
Lar", aproveitará minha companhia. Passe bem, André!
Último adeus à dedicada mãe de Lísias e me vi só, respirando
o ar de outros tempos, a longos haustos.


Não me demorei a examinar pormenores. Atravessei celeremente
algumas ruas, a caminho de casa. O coração me batia descompassado,
à medida que me aproximava do grande portão de
entrada. O vento, como outrora, sussurrava carícias no arvoredo
do pequeno parque. Desabrochavam azáleas e rosas, saudando a
luz primaveril. Em frente ao pórtico, ostentava-se, garbosa, a
palmeira que, com Zélia, eu havia plantado no primeiro aniversário
de casamento.


Ébrio de felicidade, avancei para o interior. Tudo, porém, denotava
diferenças enormes. Onde estariam os velhos móveis de
jacarandá? E o grande retrato onde, com a esposa e os filhinhos,
formávamos gracioso grupo? Alguma coisa me oprimia ansiosamente. Que teria acontecido? Comecei a cambalear de emoção.


Dirigi-me à sala de jantar, onde vi a filhinha mais nova, transformada
em jovem casadoura. E, quase no mesmo instante, vi Zélia
que saía do quarto, acompanhando um cavalheiro que me pareceu
médico, à primeira vista.


Gritei minha alegria com toda a força dos pulmões, mas as
palavras pareciam reboar pela casa sem atingir os ouvidos dos
circunstantes. Compreendi a situação e calei-me, desapontado.
Abracei-me à companheira, com o carinho da minha saudade
imensa, mas Zélia parecia totalmente insensível ao meu gesto de
amor. Muito atenta, perguntou ao cavalheiro alguma coisa que
não pude compreender de pronto. O interlocutor, baixando a voz,
respondeu, respeitoso:


– Só amanhã poderei diagnosticar seguramente, porque a
pneumonia se apresenta muito complicada, em virtude da hipertensão.
Todo o cuidado é pouco, o Dr. Ernesto reclama absoluto
repouso.


Quem seria aquele Dr. Ernesto? Perdia-me num mar de indagações,
quando ouvi minha esposa suplicar, ansiosa:


– Mas, doutor, salve-o, por caridade! Peço-lhe! Oh! não suportaria
uma segunda viuvez.


Zélia chorava e torcia as mãos, demonstrando imensa angústia.
Um corisco não me fulminaria com tamanha violência. Outro
homem se apossara do meu lar. A esposa me esquecera. A casa
não mais me pertencia. Valia a pena de ter esperado tanto para
colher semelhantes desilusões? Corri ao meu quarto, verificando
que outro mobiliário existia na alcova espaçosa. No leito, estava
um homem de idade madura, evidenciando melindroso estado de
saúde. Ao lado dele, três figuras negras iam e vinham, mostrando-se
interessadas em lhe agravar os padecimentos.  De pronto, tive ímpetos de odiar o intruso com todas as forças, mas já não era eu o mesmo homem de outros tempos. O
Senhor me havia chamado aos ensinamentos do amor, da fraternidade
e do perdão. Verifiquei que o doente estava cercado de
entidades inferiores, devotadas ao mal; entretanto, não consegui
auxiliá-lo imediatamente.


Assentei-me, decepcionado e acabrunhado, vendo Zélia entrar
no aposento e dele sair, várias vezes, acariciando o enfermo com a
ternura que me coubera noutros tempos, e, depois de algumas
horas de amarga observação e meditação, voltei, cambaleante, à
sala de jantar, onde encontrei as filhas conversando. Sucediam-se
as surpresas. A mais velha casara-se e tinha ao colo o filhinho. E
meu filho? Onde estaria ele?


Zélia instruiu convenientemente uma velha enfermeira e veio
palestrar, mais calmamente, com as filhas.


– Vim vê-los, mamãe - exclamou a primogênita -, não só para
colher notícias do Dr. Ernesto, como também porque, hoje, singulares
saudades do papai me atormentam o coração. Desde cedo,
não sei por que penso tanto nele. É uma coisa que não sei bem
definir...


Não terminou. Lágrimas abundantes borbotavam-lhe dos olhos.
Zélia, com imensa surpresa para mim, dirigiu-se à filha autoritariamente:


– Ora essa! Era o que nos faltava!... Aflitíssima como estou,
tolerar as suas perturbações. Que passadismo é esse, minha filha?


Já proibi a vocês, terminantemente, qualquer alusão, nesta casa, a
seu pai. Não sabe que isso desgosta o Ernesto? Já vendi tudo
quanto nos recordava aqui o passado morto; modifiquei o aspecto
das próprias paredes, e você não me pode ajudar nisso?


A filha mais jovem interveio, acrescentando: – Desde que a pobre mana começou a se interessar pelo maldito
Espiritismo, vive com essas tolices na cachola. Onde já se viu
tal disparate? Essa história dos mortos voltarem é o cúmulo dos
absurdos.


A outra, embora continuasse chorando, falou com dificuldade:


– Não estou traduzindo convicções religiosas. Então é crime
sentir saudades de papai? Vocês também não amam, não têm
sentimento? Se papai estivesse conosco, seu único filho varão não
andaria, mamãe, a praticar por aí tantas loucuras.


– Ora, ora - tornou Zélia, nervosa e enfadada -, cada qual tem
a sorte que Deus lhe dá. Não se esqueça de que André está morto.
Não me venha com lamúrias e lágrimas pelo passado irremediável.
Aproximei-me da filha chorosa e estanquei-lhe o pranto,
murmurando palavras de encorajamento e consolação, que ela não
registrou auditiva, mas subjetivamente, sob a feição de pensamentos
confortadores.


Afinal, via-me em face de singular conjuntura! Compreendia,
agora, o motivo pelo qual meus verdadeiros amigos haviam procrastinado,
tanto, o meu retorno ao lar terreno.


Angústias e decepções sucediam-se de tropel. Minha casa pareceu-
me, então, um patrimônio que os ladrões e os vermes haviam
transformado. Nem haveres, nem títulos, nem afetos! Somente
uma filha ali estava de sentinela ao meu velho e sincero amor.
Nem os longos anos de sofrimento, nos primeiros dias de além-
túmulo, me haviam proporcionado lágrimas tão amargas.


Chegou a noite e voltou o dia, encontrando-me na mesma situação
de perplexidade, a ouvir conceitos e a surpreender atitudes
que nunca poderia ter suspeitado. À tardinha, Clarêncio passou, oferecendo-me o cordial da sua
palavra amiga e reta. Percebendo meu abatimento, disse, solícito:


– Compreendo suas mágoas e rejubilo-me pela ótima oportunidade
deste testemunho. Não tenho diretrizes novas. Qualquer
conselho de minha parte, portanto, seria intempestivo. Apenas,
meu caro, não posso esquecer que aquela recomendação de Jesus
para que amemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como
a nós mesmos, opera sempre, quando seguida, verdadeiros milagres
de felicidade e compreensão, em nossos caminhos.


Agradeci, sensibilizado, e pedi que me não desamparasse com
o necessário auxílio.


Clarêncio sorriu e despediu-se.


Então, em face da realidade, absolutamente só no testemunho,
comecei a ponderar o alcance da recomendação evangélica e
refleti com mais serenidade. Afinal de contas, por que condenar o
procedimento de Zélia? E se fosse eu o viúvo na Terra? Teria,
acaso, suportado a prolongada solidão? Não teria recorrido a mil
pretextos para justificar novo consórcio? E o pobre enfermo?
Como e por que odiá-lo? Não era também meu irmão na Casa de
Nosso Pai? Não estaria o lar, talvez, em piores condições, se Zélia
não lhe houvesse aceitado a aliança afetiva? Preciso era, pois,
lutar contra o egoísmo feroz. Jesus conduzira-me a outras fontes.
Não podia proceder como homem da Terra. Minha família não
era, apenas, uma esposa e três filhos na Terra. Era, sim, constituída
de centenas de enfermos nas Câmaras de Retificação e estendia-
se, agora, à comunidade universal. Dominado de novos pensamentos,
senti que a linfa do verdadeiro amor começava a brotar
das feridas benéficas que a realidade me abrira no coração.

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