sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Nosso Lar - 29 - A Visão De Francisco

Enquanto Narcisa consolava o doente aflito, fui informado de que me chamavam ao aparelho de comunicações urbanas.

Era a senhora Laura que pedia notícias. De fato, esquecera-me de avisá-la sobre as deliberações de serviço noturno. Pedi desculpas à minha benfeitora e forneci rápido relatório verbal da nova situação.


Através do fio, a genitora de Lísias parecia exultar, compartilhando meu justo contentamento.

Ao termo de nossa ligeira conversa, disse, bondosa:


– Muito bem, meu filho! apaixone-se pelo seu trabalho, embriague-se de serviço útil. Somente assim, atenderemos à nossa edificação eterna. Lembre, porém, que esta casa também lhe pertence.


Aquelas palavras encheram-me de nobres estímulos.


Regressando ao contacto direto com os enfermos, notei Narcisa a lutar heroicamente por acalmar um rapaz que revelava singulares distúrbios.


Procurei ajudá-la.


O pobrezinho, de olhos perdidos no espaço, gritava, espantadiço:


– Acuda-me, por amor de Deus! Tenho medo, medo!...


E, olhar esgazeado dos que experimentam profundas sensações de pavor, acentuava:


– Irmã Narcisa, lá vem "ele"!, o monstro! Sinto os vermes novamente! "Ele"! "Ele"!... Livre-me "dele" irmã! Não quero, não quero!...  – Calma, Francisco - pedia a companheira dos infortunados -, você vai libertar-se, ganhar muita serenidade e alegria, mas depende do seu esforço. Faça de conta que a sua mente é uma esponja embebida em vinagre. É necessário expelir a substância azeda. Ajudá-lo-ei a fazê-lo, mas o trabalho mais intenso cabe a você mesmo.


O doente mostrava boa-vontade, acalmava-se enquanto ouvia os conceitos carinhosos, mas volvia à mesma palidez de antes, prorrompendo em novas exclamações.


– Mas, irmã, repare bem... "ele" não me deixa. Já voltou a atormentar- me! Veja, veja!...


– Estou vendo-o, Francisco - respondia ela, cordata -, mas é indispensável que você me ajude a expulsá-lo.


– Este fantasma diabólico!... - acrescentava a chorar como criança, provocando compaixão.


– Confie em Jesus e esqueça o monstro - dizia a irmã dos infelizes, piedosamente -, vamos ao passe. O fantasma fugirá de nós.


E aplicou-lhe fluidos salutares e reconfortadores, que Francisco agradeceu, manifestando imensa alegria no olhar.


– Agora - disse ele, finda a operação magnética -, estou mais tranqüilo.


Narcisa ajeitou-lhe os travesseiros, mandou que uma serva lhe trouxesse água magnetizada.


Aquela exemplificação da enfermeira edificava-me.


O bem, como o mal, em toda parte estabelece misterioso contágio.

Observando-me o sincero desejo de aprender, Narcisa aproximou-se mais, mostrando-se disposta a iniciar-me nos sublimes segredos do serviço. – A quem se refere o doente? - indaguei, impressionado. Está, porventura, assediado por alguma sombra invisível ao meu olhar?


A velha servidora das Câmaras de Retificação sorriu carinhosamente e falou:


– Trata-se do seu próprio cadáver.


– Que me diz? - tornei, espantado.


– O pobrezinho era excessivamente apegado ao corpo físico e veio para a esfera espiritual após um desastre, oriundo de pura imprudência. Esteve, durante muitos dias, ao lado dos despojos, em pleno sepulcro, sem se conformar com situação diversa. Queria firmemente levantar o corpo hirto, tal o império da ilusão em que vivera e, nesse triste esforço, gastou muito tempo. 


Amedrontava- se com a idéia de enfrentar o desconhecido e não conseguia acumular nem mesmo alguns átomos de desapego às sensações físicas. Não valeram socorros das esferas mais altas, porque fechava a zona mental a todo pensamento relativo à vida eterna. 

Por fim, os vermes fizeram-lhe experimentar tamanhos padecimentos que o pobre se afastou do túmulo, tomado de horror. Começou, então, a peregrinar nas zonas inferiores do Umbral; no entanto, os que lhe foram pais na Terra possuem aqui grandes créditos espirituais e rogaram sua internação na colônia. 

Trouxeram-no os Samaritanos, quase à força. Seu estado, contudo, é ainda tão grave que não poderá ausentar-se, tão cedo, das Câmaras de Retificação.

O amigo, que lhe foi genitor na carne, está presentemente em arriscada missão, distante de "Nosso Lar".


– E vem visitar o doente? - perguntei.


– Já veio duas vezes e experimentei grande comoção, observando-lhe o sofrimento, discreto.


Tamanha é a perturbação do rapaz, que não reconheceu o pai generoso e dedicado. Gritava, aflito, mostrando a demência dolorosa. O genitor, que veio vê-lo em companhia do Ministro Pádua, do Ministério da Comunicação, pareceu muito superior à condição humana, enquanto se encontrava com o nobre amigo que obtivera hospitalidade para o filho infeliz. Demoraram-se bastante, comentando a situação espiritual dos recém-chegados dos círculos carnais. Mas, quando o Ministro Pádua se retirou, compelido por circunstâncias de serviço, o pai do rapaz me pediu lhe perdoasse o gesto humano e ajoelhou-se diante do enfermo. Tomou-lhe as mãos, ansioso, como se estivesse a transmitir vigorosos fluidos vitais, e beijou-lhe a face, chorando copiosamente. Não pude conter as lágrimas e retirei-me, deixando-os a sós. Não sei o que se passou, em seguida, entre ambos; mas notei que Francisco, desde esse dia, melhorou bastante.

A demência total reduziu-se a crises que são, agora, cada vez mais espaçadas.


– Como tudo isso comove! - exclamei sob forte impressão.


Entretanto, como pode a imagem do cadáver persegui-lo?


– A visão de Francisco - esclareceu a velhinha, atenciosa -, é o pesadelo de muitos espíritos depois da morte carnal. Apegam-se demasiadamente ao corpo, não enxergam outra coisa, nem vivem senão dele e para ele, votando-lhe verdadeiro culto, e, vindo o sopro renovador, não o abandonam. Repelem quaisquer idéias de espiritualidade e lutam desesperadamente pelo conservar. Surgem, no entanto, os vermes vorazes e os expulsam. A essa altura, horrorizam- se do corpo e adotam nova atitude extremista. A visão do cadáver, porém, como forte criação mental deles mesmos, atormenta- os no imo da alma. Sobrevêm perturbações e crises, mais ou menos longas, e muito sofrem até à eliminação integral do seu fantasma.


Notando-me a comoção, Narcisa acrescentou:


– Graças ao Pai, venho aproveitando bastante, nestes últimos anos de serviço. Ah! como é profundo o sono espiritual da maioria de nossos irmãos na carne! Isto, porém, deve preocupar-nos, mas não deve ferir-nos. A crisálida cola-se à matéria inerte, mas a borboleta alçará o vôo; a semente é quase imperceptível e, no entanto, o carvalho será um gigante. A flor morta volve à terra, mas o perfume vive no céu. Todo embrião de vida parece dormir.


Não devemos esquecer estas lições.


E Narcisa calou-se, sem que me atrevesse a interromper-lhe o silêncio.

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